A ideia da inerrância da Bíblia, não deixa margem para nenhuma espécie de erro nelas. Como a descreve Wayne Grudem, teólogo americano, a inerrância da Escritura significa que ela “não afirma nada que é contrário a fato”. Grudem rejeita a posição diferente, que admite divergências na Bíblia em detalhes menores, científicos e históricos, sem comprometer sua essência teológica. Para contestar essa opinião, Grudem apela para versos que falam que toda a Escritura é inspirada por Deus, pura, perfeita e proveitosa, de modo que nenhum detalhe escapa à inspiração divina. Ele diz: “Tudo declarado na Escritura está lá porque Deus pretendeu que estivesse lá. Deus não diz nada involuntariamente.” A quem sustenta que há divergências pequenas e de importância secundaria, Grudem pergunta: “Em qual verso ou versos específicos estes ‘erros’ ocorrem?” Mas há algo de inocência nesse pensamento dele.
Todavia, vejamos as observações sobre o assunto feitas por um especialista em Novo Testamento, Izak du Plessis, que ensinou na Universidade da África do Sul. Em sua obra Nazaré ou Egito: Quem estava certo? Uma perspectiva histórica sobre o Novo Testamento, ele diz: “Quando os evangelhos foram escritos, recordações históricas foram incorporadas, mas o interesse é menos em detalhes factuais que e seu significado para se compreender o Senhor ressurgido do presente.”
“Nazaré ou Egito?” Du Plessis alegou que a reprodução dos eventos que se seguiram ao nascimento de Jesus por Mateus e Lucas “são tão surpreendentemente diferentes. Visto de uma perspectiva histórica, o problema parece insolúvel”. Mateus conta que José e Maria, “ sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho” (Mateus 2:12). Um anjo disse a José em sonhos:
Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e demora-te lá até que eu te diga, porque Herodes há de procurar o menino para o matar. E, levantando-se ele, tomou o menino e sua mãe, de noite, e foi para o Egito. E esteve lá até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta, que diz: Do Egito chamei o meu Filho. (vv. 13–15)
Então o casal voltou para Nazaré.
Em Lucas, nada lemos sobre uma fuga para o Egito e uma permanência lá, como também nada se lê sobre a matança de crianças. Ao contrário, a família de José foi abertamente ao templo de Jerusalém, palácio de residência de Herodes. Então eles foram diretamente para a sua casa em Nazaré.
Não se trata apenas de uma narrativa mais enxuta de Lucas, que teria omitido a matança de crianças e a fuga de José para o Egito, mas de uma diferença mais profunda, visto que Lucas mostra a família de José à vontade em Jerusalém. Du Plessis comenta: “Parece muito aparente que a história de Mateus não descreve um evento histórico.” Ele argumenta que Herodes pode muito facilmente ser comparado simbolicamente com Faraó, que promovera a matança de meninos no Egito (Êx. 1:15–22), pelo que o bebê Moisés fora escondido pela família. “É possível que a história seja uma reconstrução da história de Moisés no Velho Testamento. Faraó é o exemplo tipológico de Herodes e, Moisés, aquele de Jesus. É possível que Mateus (ou a tradução que ele usou) desejou apresentar Jesus como o verdadeiro Israel e o novo Moisés.”
É clara a existência de algumas divergências históricas, cronológicas, geográficas e fraseológicas nas Escrituras.
No final do seu livro, du Plessis diz: “A histórica inexatidão que nós temos apontado neste livro deve nos fazer entender que a autoridade da Bíblia não está em uma espécie de infalibilidade e acurácia histórica.”
Segundo os discernimentos da Crítica da Redação (Redaktionsgeschichte, em alemão), desenvolvida especialmente pelos eruditos alemães Gunther Bornkamm, Willi Marxsen e Hans Conzelmann, os autores dos evangelhos arrumaram e editaram os dados que tinham, segundo as suas intenções teológicas, para atender às necessidades dos respectivos públicos para os quais escreveram originalmente. Isso responderia por diferenças temáticas, históricas, cronológicas, de linguagem entre os evangelhos. Escrevendo a cristãos convertidos do Judaísmo, Mateus edita o seu texto de modo diferente de Marcos, que escreveu a gentios convertidos à fé cristã. Por exemplo, no evangelho de Mateus, judeus se dirigiam a Jesus chamando-o de “Mestre”, em episódios que não terminavam bem, enquanto gentios o chamavam de “Senhor”, em episódios que terminavam bem. Mateus está a ensinar à sua comunidade que Jesus não era um simples mestre rabínico, mas o Senhor. Como é típico de Mateus repreender a incredulidade dos judeus, exaltando a fé de gentios, estes aparecem chamando Jesus de Senhor. Ainda, em virtude desse recurso, Mateus e Lucas, por exemplo, divergem sobre o tratamento usado para Jesus em um mesmo episódio: um homem clamou a Jesus para salvar o seu filho possesso e, segundo Mateus, ele chamou Jesus de “Senhor” (17:15), kurios, enquanto, de acordo com Lucas, de “Mestre” (9:38), didaskalos. Escrevendo suas obras algumas décadas depois dos fatos que narram, os autores dificilmente saberiam os tratamentos exatos usados pelas pessoas que abordavam Jesus. Assim, eles usaram os tratamentos segundo o que desejavam comunicar. Isso entendido, não é preciso que haja perplexidade com essas “divergências na Bíblia”, que não afetam a sua mensagem teológica. “A palavra inscrita de Deus é perfeitamente digna de confiança e sem erro no sentido de seu propósito divinamente pretendido ou, poderíamos dizer, vista do ponto de vista de Deus” (Gerhard Maier).
Ou aceitamos, pela razão e pela ciência, que a Bíblia “não tinha razão” ou aceitamos, pela fé, a pregação e o testemunho teológico dos profetas e apóstolos. Ou eu sigo Richard Dawkings ou eu sigo o apóstolo Paulo, cuja pregação traz pleno sentido à minha vida e à minha fé. Digo, como o apóstolo Pedro: “Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna, e nós temos crido e conhecido que tu és o Cristo, o Filho de Deus” (João 6:68–69).
“Embora a ciência seja realmente um deleite, ela será mesmo o supremo deleite do intelecto? A música, a arte, a literatura, o amor e a verdade não têm nada a ver com o intelecto?”. São as perguntas de John C. Lennox, em Por Que a Ciência Não Consegue Enterrar Deus. A ciência e a razão não têm poder para estabelecer juízos metafísicos, que estão, por definição, fora de seu escopo e método. Austin Farrar observa, a esse respeito:
Cada ciência escolhe um aspecto da realidade das coisas do mundo e mostra como ela funciona. Tudo o que se situa fora desse campo se situa fora desse escopo da ciência. E sendo que Deus não faz parte do mundo, muito menos de um aspecto dele, nada do que se diga sobre Deus, por mais verdadeiro que seja, pode ser uma afirmação pertencente a alguma ciência.
Que a ciência não pode provar que Deus existe é razão suficiente para ela admitir que não pode provar que ele não existe. “Ora, sem fé é impossível agradar-lhe, porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam” (Hebreus 11:6).
Quando entendemos o que estamos expondo aqui sobre as Escrituras e quando a mensagem dela é vista como um todo sequencial e lógico, como nos propomos a apresentar nesta obra, estamos em condições de reconhecer que as Escrituras são verdadeiramente o testemunho profético e apostólico da revelação divina. A Bíblia demonstra o seu próprio status como tal.