INTRODUÇÃO
Muitos defendem que os dízimos não foram abolidos com a vinda de Cristo e são ainda requeridos, como tais, dos cristãos. Eles apelam rigorosamente para Malaquias 3:10: “Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e depois fazei prova de mim, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós uma bênção tal, que dela vos advenha a maior abastança.”
Mas há também aqueles que sustentam (corretamente) que a chegada da graça e da “lei perfeita da liberdade” (Tiago 1:25) aboliu a lei dos dízimos, juntamente com toda a lei.
No Novo Testamento, os justos não dão pela obrigação que vem da lei, isto é, por uma obrigação externa, mas livre e amorosamente, pela compulsão de um coração regenerado pelo Espírito Santo, para ajudar a atender às necessidades da obra do Senhor e dos pobres.
Discorri sobre o significado dos dízimos na era cristã em uma seção de minha dissertação de mestrado, seção essa que intitulei “Da Lei dos Dízimos à Alegre Liberdade de Amor para Dar”.
OS DÍZIMOS NO VELHO TESTAMENTO
Onze das doze tribos de Israel receberam terras por herança. A décima segunda tribo, de Levi, não recebeu terra. Ela seria responsável pelo manutenção do culto e seria mantida pelos dízimos do povo de Israel. Deus disse: “E eis que aos filhos de Levi tenho dado todos os dízimos em Israel por herança, pelo seu ministério que exercem, o ministério da tenda da congregação” (Números 18:21). Os dízimos eram “porções designadas pela Lei para os sacerdotes e para os levitas” (Neemias 12:44). Os dízimos eram produtos da lavoura e pecuária. Assim, quando Malaquias 3:10 exorta o povo de Israel a trazer todos os dízimos, para que haja mantimento na casa do Senhor, trata-se de provisão para a alimentação dos sacerdotes e levitas.
No livro de Deuteronômio, a lei dos dízimos se diferenciou. Dizem os versos 14:22–29:
Certamente darás os dízimos de toda a novidade da tua semente, que cada ano se recolher do campo. E, perante o Senhor, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu mosto, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao Senhor, teu Deus, todos os dias. E, quando o caminho te for tão comprido, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o Senhor, teu Deus, para ali pôr o seu nome, quando o Senhor, teu Deus, te tiver abençoado, então, vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o Senhor, teu Deus. E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante o Senhor, teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa; porém não desampararás o levita que está dentro das tuas portas; pois não tem parte nem herança contigo. Ao fim de três anos, tirarás todos os dízimos da tua novidade no mesmo ano e os recolherás nas tuas portas. Então, virá o levita (pois nem parte nem herança tem contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em toda a obra das tuas mãos, que fizeres.
Essas novas provisões parecem servir como ponte para aquilo em que os dízimos se transformariam no Novo Testamento. O próprio dizimista comia dos víveres que entregava no lugar indicado por Deus: “comerás os dízimos do teu cereal, do teu mosto, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas.” Porém, se esse lugar fosse longe, de modo que seria difícil levar os víveres, o dizimista deveria vendê-los, levar o dinheiro ao lugar indicado por Deus, comprar ali farta comida e comê-la: “E, quando o caminho te for tão comprido, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o Senhor, teu Deus, para ali pôr o seu nome, quando o Senhor, teu Deus, te tiver abençoado, então, vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o Senhor, teu Deus. E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma […] come-o ali perante o Senhor, teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa.” Porém, deveriam comer também os levitas: “[…] porém não desampararás o levita que está dentro das tuas portas; pois não tem parte nem herança contigo.” Ainda havia uma dimensão social dos dízimos: “Ao fim de três anos, tirarás todos os dízimos da tua novidade no mesmo ano e os recolherás nas tuas portas. Então, virá o levita (pois nem parte nem herança tem contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em toda a obra das tuas mãos, que fizeres.”
EM QUE OS DÍZIMOS SE TRANSFORMARAM NO NOVO TESTAMENTO
Em um breve, mas magistral estudo publicado em 1874, Offerings to the Lord: Old and the New Testament aspects compared (“Ofertas ao Senhor: Aspectos do Velho e Novo Testamentos comparados”), David Cole declara: “A lei especial dos dízimos desapareceu com o resto da economia judaica. Tem sido um ‘líder infantil’ para tomar a igreja pela mão e conduzi-la até uma doutrina e prática do Evangelho na questão das “ofertas ao Senhor.”1
Os cristãos não devem dar por conta da lei dos dízimos no Velho Testamento. No Novo Testamento, os justos não dão pela obrigação que vem da lei, isto é, por uma obrigação externa, mas livre e amorosamente, pela uma compulsão interna de um coração regenerado pelo Espírito Santo, para ajudar a atender às necessidades da obra do Senhor e dos pobres.
No Velho Testamento, os dízimos sustentavam os sacerdotes e levitas. No Novo Testamento, todos os crentes são sacerdotes: “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pedro 2:9). Assim, para o cristão que vive consciente de seu papel de sacerdote missionário no mundo, o dinheiro gasto em sua subsistência é santo ao Senhor. Uma parte dele, porém, é oferecida para o sustento da obra do Senhor e para ajudar os necessitados, do mesmo modo que os sacerdotes da velha ordem davam ao sumo sacerdote o dízimo do dízimo que recebiam. Assim sendo, o dinheiro que o crente gasta consigo e sua família, sacerdotes missionários que são, é tão consagrado ao Senhor quanto a porção do dinheiro dedicada à obra do Senhor e aos pobres. Por isso, o dinheiro do crente deve ser usado com coisas dignas do Reino, assim como tudo que o crente faz deve ser digno do Reino.
QUANTO O CRISTÃO DEVE DAR? 10% OU QUANTO O SEU CORAÇÃO REGENERADO PELO ESPÍRITO SANTO DESEJAR LIVREMENTE?
David Cole sustentou que a igreja não está sob a lei dos dízimos e não tem tem nenhuma lei regulando as suas ofertas: “É um pensamento tocante que o Novo Testamento não tenha em nenhum lugar uma lei formal, prescrevendo o que, em forma ou em quantidade, ou em proporção à renda, Deus fará com que Seu povo separe para Ele.”2
Mas Cole assumiu que “três grandes características gerais marcam os ensinos de nosso Senhor mesmo e seus apóstolos, as quais, se bem consideradas, nos revelarão que o Novo Testamento, em suas demandas, não é menos exigente que o Velho”. Examinemos alguns aspectos representativos dessas três características.
a) Os crentes são advertidos “da maneira mais solene e enfática do perigo espiritual em se esforçar para acumular as coisas deste mundo” e encarregados de “não cobiçar e acumular posses materiais”.3 Além disso, o desperdício e o mau uso são condenados – “na satisfação de apetites sensuais e pecaminosos”.4 Os crentes são lembrados de que nossa vida não consiste na abundância eventual das coisas que possuímos, de modo que devemos ter cuidado com a cobiça (Lucas 12:15). Eles são aconselhados também a serem “ricos em boas obras, prontos para repartir” (1 Timóteo 6:18). Cole conclui finamente: “Todo o espírito do Novo Testamento diz aos crentes: ‘Vocês não devem acumular riquezas para seu próprio bem ou além do que é imperativo. Vocês devem usá-las livremente. Vocês devem fazer o bem com elas e glorificar a Deus com elas’.”5
(b) “O fundamento tendo sido tomado, como vimos”, Cole argumenta, “de que os crentes não devem acumular dinheiro para seu próprio bem ou retê-lo além de um limite necessário, mas devem usá-lo em boas obras para a glória de Deus, o próximo passo é direcionar a devoção do coração e, claro, as posses com ele, para objetos específicos”.6 Ele afirma que, antes de tudo, “os filhos de Deus são encarregados de doar sua energia supremamente ao reino dos céus” – eles devem buscar o reino de Deus primeiro, em resposta ao qual todas as coisas necessárias serão dadas a eles (Mateus 6:33). Cole observa que, embora não haja nenhuma demanda legal, ordenando diretamente que as ofertas do povo de Deus sejam destinadas em parte ao sustento da adoração a Deus, em parte ao uso dos levitas, em parte às festas para o cultivo da cordialidade familiar e da sociabilidade geral, e em parte ao alívio e alegria da viúva, do órfão e do estrangeiro, ainda assim o Novo Testamento não é, afinal, menos explícito sobre esses grandes interesses do que o Antigo.7 O apóstolo Paulo argumenta: “Vocês não sabem que os que trabalham no templo comem do templo, e os que servem no altar participam do que é oferecido no altar? Da mesma forma, o Senhor ordenou que aqueles que pregam o evangelho recebam do evangelho” (1 Coríntios 9:13–14). Cole argumenta que “ministros e missionários agora, como os sacerdotes e levitas de antigamente, devem ser sustentados pelas ofertas do povo de Deus”.8 Basta notar que os ministros cristãos não são, sozinhos, herdeiros do sacerdócio da velha dispensação.
(c) Somos solicitados a amar a Deus de todo o nosso coração e a amar nossos semelhantes como a nós mesmos, fazendo a eles tudo o que gostaríamos que fizessem a nós. “Enquanto esses desenhos estiverem na página, ninguém precisará perguntar quanto deve dar ao Senhor.”9 Paulo aconselhou os irmãos de Corinto: “Cada um dê conforme propôs em seu coração, não com pesar ou por obrigação, pois Deus ama quem dá com alegria” (2 Coríntios 9:7). O apóstolo estava de fato falando de ofertas livres, neste caso para os cristãos pobres de Jerusalém. E não encontramos em nenhum lugar em seus escritos algo além de ofertas livres que pudesse ser assumido como referência a dízimos. O célebre caso da viúva pobre que deu tudo o que tinha (Lucas 21:1–4) é programático para a nova maneira de servir a Deus. Cole afirma então:
Alguém pode duvidar, depois de todo esse ensinamento, qual é o princípio do Novo Testamento, quanto à proporção de propriedade ou renda que deve ser dedicada ao Senhor? Nenhum décimo ou dois décimos ou qualquer porção específica é mencionada. Devemos medir nossa doação pela quantidade de amor que devemos a Deus, pelas necessidades espirituais e físicas de nossos semelhantes, pela regra de ouro, pelas misericórdias que recebemos livremente, pela instrução de deixar nossa luz brilhar para que os homens possam vê-la e Deus seja glorificado […] , pelos cartuns “Dê livremente”, “Produza muito fruto”, “Abunde nesta graça”, “Faça o bem conforme tiver oportunidade”, pela sugestão de que “Deus ama um doador alegre” e pela regra “Poupe conforme Deus o fez prosperar”.10
Seu ponto é que os cartuns e ilustrações no Novo Testamento são claros o suficiente sobre o que Deus exige de Sua igreja. Nosso Salvador e Seus apóstolos “falaram clara e enfaticamente sobre as ofertas da igreja, mas não exigiram nenhuma proporção fixa de seus meios. Eles deixaram isso somente para o coração da própria igreja”.11
Então Cole pergunta:
Como a igreja deveria se sentir em vista disso? Ela deveria tirar vantagem disso para reter suas ofertas ou trazer pequenas ofertas, ou deveria sentir que ela é generosa e confiantemente lançada sobre os impulsos de seu amor sincero e até mesmo trazer muito além do que era exigido sob a lei antiga? Que o coração de cada crente pense nisso e faça a resposta por si mesmo.12
Em uma linha semelhante, Charles H. Dodd diz:
Em contraste com a lei do dízimo, considere alguns dos preceitos que Jesus estabeleceu sobre o dinheiro e seu uso. “Você não pode servir a Deus e à propriedade.” “Não acumule capital na terra.” “Ninguém que não renuncie a tudo o que tem pode ser meu discípulo.” “Venda tudo o que você tem e dê esmolas, e assim você terá bolsas que nunca se gastarão.” “Dê a todos que pedirem.”13
Enfim, este é o princípio geral sobre as ofertas ao Senhor, não dízimos: “Cada um deve dar conforme decidiu em seu coração dar, não com relutância ou por obrigação, porque Deus ama quem dá com alegria” (2 Coríntios 9:7–11).
Nesse sentido, Douglas W. Johnson afirma em O Dízimo: Desafio ou Legalismo:
O dízimo não é uma parte dos ensinos do Novo Testamento, ou para Jesus ou para Paulo. Evidentemente, nenhum dos dois sentiu que ele era um guia efetivo para dar. Sua preocupação era muito maior que o dízimo. […] A solicitação de Paulo era dar conforme eles tivessem prosperado ou sido abençoados.14
DEPOIS DE ABOLIDOS NA ERA APOSTÓLICA, OS DÍZIMOS FORAM REINTRODUZIDOS
A lei dos dízimos foi reintroduzida, alcançando agora os cristãos, quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, sob Constantino – “não até o Cristianismo se tornar a religião oficial do império o institucionalismo e legalismos começaram a substituir o dar voluntário que caracterizou os cristãos primitivos mais orientados pelo espírito” (Johnson).15
Sob Constantino, o dar baseado na livre vontade foi reintroduzido com força de lei. “O padrão do Velho Testamento, o dízimo, foi ressuscitado para pagar a nova ordem de sacerdotes”, como Johnson afirma.16 Johnson insiste: “Foi no terceiro século que o dízimo começou a ser proposto como um padrão para o dar na igreja. […] Por volta de d.C. 585, o dízimo tinha se tornado a lei da igreja.”17 De acordo, James H. Smylie sustentou que o dízimo “não era praticado na igreja cristã primitiva, mas se tornou gradualmente comum pelo sexto século”.18 Também Thomas J. Powers diz que os dízimos não eram exigidos na igreja primitiva, cujas necessidades eram atendidas por “ofertas e contribuições voluntárias”.19
Em um sermão, “Como os Cristãos Devem Considerar Moisés”, Martin Luther afirmou que os dízimos não devem ser impostos aos gentios.
A exigência de dízimos era e é mais cômoda do que o trabalho de conscientização dos crentes para darem livremente, com boa vontade, por conta de um coração regenerado e motivado pelo Espírito Santo. “Uma vida enraizada em valores cristãos é disciplinada. Ela se move para um alvo e sugue um propósito. A menos que uma pessoa seja disciplinada em cada parte da vida – inclusive dar – não haverá padrão discernível e poucas contribuições valiosas dessa vida” (Johnson).20
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- New York: Board of Publication of the Reformed Church in America, 1874. p. 15. Tradução nossa.
- Ibid., p. 15. Tradução nossa.
- Ibid., p. 15. Tradução nossa.
- Ibid., p. 16. Tradução nossa.
- Ibid., p. 17. Tradução nossa.
- Ibid.
- Ibid.
- Ibid., p. 18. Tradução nossa.
- Ibid., p. 20. Tradução nossa.
- Ibid., p. 15. Tradução nossa.
- Ibid., p. 21. Tradução nossa.
- Ibid., pp. 21–22. Tradução nossa.
- Gospel and Law: The Relation of faith and Ethics in Early Christianity. Cambrige: University Press, 1951. p. 76. Tradução nossa.
- The Tithe: Challenge or legalism? Nashville: Abingdom Press, 1984. p. 40. Tradução nossa.
- Ibid., p. 44. Tradução nossa.
- Ibid., p. 45. Tradução nossa.
- Ibid. Tradução nossa.
- Tithe. In: Encyclopedia Americana, 26:788. Danbury, CT: Grolier, 2001. p. 174. Tradução nossa.
- Citado em CROTEAU, David. A. You Mean I Don’t Have to Tithe? A deconstruction of tithing and a reconstruction of post-tithe giving. Eugene, Oregon: Pickwick, 2010. 18.
- Ibid., p. 75. Tradução nossa,